sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

 

Cura para o que não é doença

 

          Esses dias chegou até mim um funcionário oferecendo uma rifa. A princípio nada de diferente visto que volta e meia esse artifício é usado para alguma causa urgente ou sonho recorrente. Como é do meu costume especulei para que seria o recurso arrecadado e a resposta me remeteu à minha vida. O motivo era levantar fundos para pagar um exame neuropsicológico diagnosticando TEA e TDAH para o enteado. Não fosse minha relação pessoal com o TEA, ainda sim seria uma causa a aquecer o coração, então contribui de bom grado. Só o afeto faz dessas coisas.

          Esse mesmo teste, objeto da rifa, realizei com meu filho mais novo por esses tempos. O resultado positivo ao Transtorno de Espectro Autista descortinou toda uma vida antes desconhecida. Primeiro vieram as respostas (coisa diferente porque antes vem as perguntas) à muita coisa que não entendia. Coisa natural visto que o entendimento vem do conhecimento, e até aquele momento, eu não detinha o conhecimento. Muitas reações e comportamentos do filho, desde a infância, foram sendo explicados pelas características do autismo. Parece que é tirado um peso das costas do pai que por muitas vezes se sentiu incapaz de educar o filho da maneira culturalmente convencional. Depois das respostas, invertendo o processo, vieram as perguntas. Uma enormidade de questionamentos e dúvidas sobre o transtorno e de como lidar com ele. Aquela culpa que havia me livrado quando escutei o diagnóstico voltou de forma redobrada. Será que tenho capacidade para educar e conviver com um filho autista? Será?

          A primeira coisa que aprendi é que o autismo não é uma doença e sim um jeito de ser. Portanto não há de se falar em cura para aquilo que não é doença. Um axioma difícil de absorver. Não tem cura, mas tem tratamento. Para quem é portador do TEA e para quem convive com ele. Quase uma reeducação. Sabe quando a professora do primário ensina condutas básicas aos seus alunos como “não pode morder no amiguinho”? É mais ou menos isso. Aprender do princípio como lidar com os seres humanos. Seus jeitos de ser e de se manifestar. Como se voltasse a estaca zero no processo de se conhecer como ser humano e como se relacionar com seu próximo. E o que é preciso e necessário de tratamentos nesse processo de reeducação? Lançar mão do conhecimento. Ferramenta essencial, pois, sem ela é como andar em campo minado vendado. Paciência também é muito bem-vinda, de preferência em grandes doses. Resiliência para fletir e não quebrar fica no esteio do tratamento. Empatia serve à compreensão. Afeto funciona na solidificação. Aliás se tivesse que eleger um tratamento essencial, esse seria o afeto. Melhor que qualquer remédio e qualquer oração. Poderoso catalisador de compreensões humanas e solidificar de sentimentos bons.

          Ao final, mesmo que não tenha chegado a ele, entendo que todo o processo é lento e constante. Por isso a paciência. Não se aprende a andar sem engatinhar. É um processo de redescobertas e ressignificados. Palavras novas são aprendidas e sentimentos novos são descobertos. Por isso não é uma doença e sim um renascimento. Um ressurgimento de quem é portador do TEA e daqueles que o amam incondicionalmente. Puro afeto.

 

           

Guilherme Augusto Santana

Goiânia, sexta feira 05 de janeiro de 2024

santanagui@hotmail.com


sexta-feira, 10 de março de 2023

 

Sobre vida, morte e sapatos

Hoje o dia amanheceu daquele jeito. O caos completo. Problemas em todas as pontas. Antigos e novos, todos resolveram dar as caras nessa sexta feira embaçada. E nem bem o dia esquentou, já estou sentado na minha sala, olhando pela janela e pensando em chutar o pau da barraca antecipando assim o fim de semana. Como se isso fizesse todas as intercorrências sumirem. Nesse devaneio matinal, avistei da janela uma família que chegava para um velório (relembrando que trabalho em um cemitério) e, já ao pé da escada, se abraçavam em meio a lágrimas de despedida. Uma cena cotidiana para quem tem por ofício proporcionar a guarda de memórias sob sete palmos. Lembrei-me do Seu Vilmar sapateiro na hora. Uma pequena explicação sobre seu Vilmar: possui uma banca de engraxar sapatos em uma praça muito tradicional em Goiânia. Daquelas figuras pitorescas da cidade. Depois da digressão volto à lembrança. Esses dias estava entre um compromisso e outro no centro da cidade e passei na frente da banca do Seu Vilmar. Tinha tempo que não engraxava sapato então resolvi, de impulso, parar. Ele me atendeu com a simpatia de sempre. Senta, prepara, graxa. A princípio em silêncio. Ambos. Uma pessoa entra na banca e entrega uma sacola e um copo de café. Ressalta: Vilmar aí tem um enroladinho de queijo quentinho e um café. Depois dos agradecimentos e da saída do cidadão, pergunto se era cliente. Sim há 18 anos. Fala com a boca cheia de orgulho. Puxo o fio do assunto. Desde quando está nesse ponto engraxando? Esse ano fazem 24 anos. Aliás esse mês completa aniversário. Demonstro minha surpresa e pergunto se hoje estava melhor ou pior do que no tempo em que ele começou. Ele comenta melancolicamente que antigamente era melhor. Mais pessoas e menos carros. De bate pronto me pergunta se sou advogado. Devo ter cara de. Abro um sorriso e conto-lhe meu ofício. Coveiro. Ele responde o sorriso e abre a caixa de dúvidas. Tudo isso enquanto a flanela canta no sapato. Tinha dúvidas sobre cremação. Perguntou e eu respondi. Então como num passe de mágica, o que ocorre na maioria das vezes com pessoas que conversam com coveiros, começou a explicar sua relação com a morte. Disse que não a temia. Que tinha mais receio de ficar inválido do que de morrer. Começou a passar a graxa e contou sobre como cuidou de pai e mãe nos momentos finais. Partiram e ele ficou tranquilo. Sensação de missão cumprida. Disse que nem chorou. Quem chora muito em enterro é porque ficou devendo algo ao defunto. Boa tese. Disse ainda que valia era viver. Viver bem. Trabalhar. Conhecer e servir pessoas. Nas últimas flaneladas de polimento do sapato aproveitou para finalizar sobre como gostava daquele lugar, mesmo tão mudado de quando ele iniciou o ofício. Finalizou, paguei, despedi e parti. Ele ficou. Continuava o ofício e o gosto pelo trabalho e pelas pessoas. Quando, voltando ao começo da crônica, lembrei do Seu Vilmar, o que me puxou foi a cena do choro da família diante da morte que via da janela, porém estava enganado. Apesar de termos falado sobre morte e sapatos, o que me puxou naquele momento foi a vida. Expressa em palavras simples e singelas, porém de uma transcendência ímpar. A vida vivida nessas dezenas de anos com seu trabalho e as pessoas a mudarem ao seu redor. A vida com seus problemas e suas satisfações.

 O céu aqui continua embaçado e os problemas permanecem os mesmos. Talvez o que tenha mudado seja a forma de como encará-los. Resignação por não poder desnublar o dia, mas resiliência para poder iluminar a vida.

Guilherme Augusto Santana

10/03/2023       

domingo, 14 de agosto de 2022

Ser Pai ainda é...

 

Ser Pai ainda é ...

 

... acordar mais cedo e fazer café mesmo que os filhos já consigam fazer sozinhos.

... chegar cansado do trabalho e se dispor a passar a matéria da prova do dia seguinte.

... perder noites de sono pensando qual profissão o filho vai escolher.

... escutar as conversas de pegação da balada e fazer cara de paisagem.

... fazer waflle com nutella às sextas, mesmo que isso estrague a dieta.

... escutar os filhos tocando e achar aquilo a coisa mais maravilhosa do mundo.

... se pegar chorando ao relembrar os primeiros passos.

... fazer caça ao tesouro mesmo que a filha já tenha 17 anos.

... estar disposto a ir buscar nas festas a qualquer hora da madrugada.

... arrumar um pretexto para ficar juntos e pegar no pé.

... estar no meio de uma reunião de trabalho e responder ao WhatsApp com um emoji.

... ser caçoado por ainda usar emojis nas conversas de WhatsApp.

... abraçar bem apertado mesmo quando os filhos não querem.

... ver os preparativos para um presente-surpresa e fazer cara de espanto ao recebê-la.

... perder noites de sono pensando nas adversidades que os filhos irão enfrentar.

... pegar no colo sempre.

... perguntar sempre como foi na escola mesmo já sabendo a resposta.

... assistir seções de filmes juntos com direito a debates ideológicos.

... entender que as gerações são diferentes e é preciso evoluir a maneira de pensar.

... se emocionar ao ver um filho ouvir uma música que você gostava.

... abraçar os amigos dos seus filhos como se fossem seus.

... ir dormir por último para ter a certeza de que todos estão seguros.

... falar sobre todos os assuntos, mesmo que isso cause um desconforto.

... tratar sobre sexualidade e abandonar os velhos preconceitos da juventude.

... acostumar-se com genros e noras, independente do gênero do filho.

... deixar a casa aberta para as baladas para mantê-los mais perto.

... deixar de fazer o seu para fazer o dele.

... estar sempre por perto quando as decepções veem.

... sofrer de dor quando o filho sofre de amor.

 

 

Ser pai ainda é ...

 

Participar, ajudar, sofrer, ensinar, chorar, se emocionar...

 

É saber que a partir daquele momento você nunca mais será o mesmo, e ter orgulho disso.

 

Mais do que nunca sou pai.

 

Guilherme Augusto Santana

14/08/2022

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Entre tantas histórias

 Entre tantas histórias

 

Entre as tantas histórias do saudoso governador Iris Rezende, estive como protagonista em uma delas. Um duelo do velho animal político e do jovem aprendiz de empresário. Mandou-me chamar para uma reunião no paço municipal para tratarmos da revolta popular em relação a instalação de um cemitério na região oeste de Goiânia. Na época eu dirigia uma empresa privada que detinha uma concessão da Prefeitura para a construção de um novo cemitério particular na capital. A contrapartida desse empreendimento particular seria a construção e doação de um cemitério público, à prefeitura, para sepultamento de munícipes carentes. Assim foi feito, e o cemitério municipal foi construído em área de fundo do terreno com frente voltada para alguns bairros da periferia de Goiânia. Quando a população descobriu que a obra que se erguia seria de um cemitério, logo se revoltou o que culminou em algumas cenas de barbárie com vandalização das instalações da obra do cemitério público. Por esse motivo eu tinha sido convocado à presença do Prefeito para maiores esclarecimentos. Tinha pouco mais de 30 anos e confesso que tremia dentro do terno que coloquei para a ocasião. Iria estar frente a frente com um dos maiores políticos goianos depois de Leopoldo de Bulhões. Era de assustar qualquer crente. Não me recordo se foi servido água ou café porque meus pensamentos estavam voltados para minhas pernas que balançavam como duas varetas procurando água no subsolo. Ele entrou na sala onde fui posto a aguardar ladeado de seis outras pessoas (poderiam ter sido cinco ou sete pessoas, pois a precisão não era o meu aliado naquele momento). Sentou-se perto de mim no canto de uma mesa grande. Os demais permaneceram de pé à nossa volta. Parecia uma rinha de galo onde os desafiantes ficaram ao centro diante de uma plateia apostadora. Colocou a mão sobre a minha mão como um gesto de aproximação e começou a contar histórias relacionadas a cemitérios. Penso que a grande maioria das pessoas têm histórias relacionadas à morte para contar e quando encontram palco apropriado tendem a contá-las. Passei por isso diversas vezes desde quando comecei meu ofício de coveiro e com o ex-governador não haveria de ser diferente. Depois do preâmbulo, finalmente, entrou no assunto que me trazia até ele. Resolver a revolta popular diante da construção do cemitério público. Depois de muito bailado pela sala (no sentido figurado), desenhamos uma solução. O empreendimento entraria com um pedido de parcelamento de uma faixa do cemitério que ficava lindeira à vizinhança. Como se fosse uma faixa de lotes que protegeria os cidadãos. Assim a população ficaria de frente a lotes comerciais e os lotes comerciais ficariam de fundo com o cemitério. Concordamos. Parte dos lotes estariam dentro da área do cemitério particular e parte dentro do cemitério recém doado a Prefeitura. Cada um cuida dos seus. Vamos embora? Não! Novamente as mãos repousadas sobre a minha, disse que os lotes comerciais que estavam dentro do cemitério público não eram de interesse da prefeitura. Vereador toma tudo da gente, disse ele. O que nos interessa mesmo é mais área de cemitério municipal. Precisamos enterrar os mais necessitados, tornou a dizer. Tudo bem, prefeito. Troco área de lotes comerciais por mais área de cemitério. Resolvido? Mas a questão é que área comercial vale mais que área de cemitério, argumentou ele. E nisso começou uma negociação entre equivalência de áreas com uma disputa centímetro a centímetro. E a plateia formada vibrava em silêncio a cada movimento de barganha até que fechamos o “negócio”. Já ia me levantando com ar de vitorioso que sai de uma batalha produtiva, quando ele me fez um último apelo. Quase com água nos olhos. Sabe Dr. Guilherme (pensa um jovem ser chamado de doutor por um ex-ministro da justiça), desses lotes que acabamos de permutar, você poderia doar uns três para a prefeitura. Mas prefeito, o senhor acabou de trocá-los comigo e além do mais disse que lotes comerciais não eram de interesse da prefeitura! Mas é que nesses lotes posso construir uma creche, um CAIS ou uma escola. Benefício para a população carente daquela região tão desassistida. Ah e seria bom que fossem contíguos os lotes e na beirada da área. Pode ser? Naquele momento, exausto que estava, joguei a toalha. Está bem Prefeito! Vamos proceder dessa forma. A claque que apreciava o experiente domador de leões domar aquele gatinho inofensivo abriu sorriso de orelha a orelha. Restou-me então levantar, cumprimenta-lo pelo espírito de abnegação pública e sair. Carregado de todo aprendizado possível. Com certeza para um homem público com o quilate de Iris Rezende, aquela batalha havia sido pequena e corriqueira, mas para um jovem com a funda na mão, aquela tinha sido a batalha de uma vida.

 

* homenagem pelo falecimento de Iris Resende Machado

 

Guilherme A. Santana

santanagui@hotmail.com   

domingo, 17 de outubro de 2021

Juventude pasteurizada

 

Juventude pasteurizada

 

Prometi que voltaria da viagem à praia e escreveria uma crônica. Não que não tivesse escrito em outras ocasiões de retorno, mas essa seria diferente. Não seria de exaltação cênica, gastronômica e etílica. Nem um fato extemporâneo que merecesse um enfoque individual. Não. Dessa vez escreveria sobre um fenômeno que presenciei nas areias do sul da Bahia. Um fenômeno que imagino estar ocupando as praias desse nosso belo país tropical. Estou me referindo à juventude pasteurizada. Sabe aquele processo criado por Pasteur que utilizamos no leite? Pois é. Mas não levem em conta que seria algum artifício de eliminação de germes. Não. Seria mais um caminho para tornar todo leite igual. Sem características próprias. Matar aquilo que dá características individuais à bebida. Expliquemos melhor.

Gostaria que os leitores imaginassem a cena de comercial de bronzeador. Jovens na flor da idade com seus corpos malhados desfilando pelas areias da praia. Para as mulheres, em sua grande maioria, os vários preenchimentos. O campeão é o de lábios. Mas temos vários outros. Silicone já ficou obrigatório. Maquiagem de quem está indo para uma festa de casamento, inclusive com penteados ao sabor do vento. Acabaram de sair do salão de belezas. Trajes de banho impecáveis das grifes da moda com suas saídas esvoaçantes para se alinhar com os cabelos. Chapéus! Não nos esqueçamos deles. De vários tipos e formatos, predominando o boné do New York Yankees (não entendi o porquê do time de beisebol e se alguém puder me explicar esse fenômeno eu agradeceria). Tem os óculos escuros espalhafatosos também. Bebem espumante, porque cerveja dá barriga. Claro. Escutam música de balada imaginando DJs em praias na Riviera Francesa. Para os homens temos sungas estampadas para os corpos malhados. Tatuagens cobrem os braços como os jogadores de futebol. Cabelos penteados à perfeição. O copo térmico Stanley (descobri o nome na viagem) encontra-se em quase todas as mãos. Bebem algo a base de gin, porque vocês sabem que cerveja dá barriga. Terminam com uma bermuda quase sempre branca de sarja amassada com uma camisa em tons pasteis, linho eu imagino, também amassada. Sentam-se todos à beira da praia em futons brancos e miram o celular o tempo todo. Só se dirigem à beira d´água para uma breve seção de filmagem e fotos que deverá inundar as redes sociais com o objetivo de mostrar o quanto a viagem está sendo incrível. Conseguiram imaginar?

Eu do local onde estava a observar todo esse enquadramento de costumes, fiquei a me perguntar mentalmente algumas coisas. O que havia de mal em entrar no mar? Como prescindir da experiência de levar pelo menos um caixote das ondas e voltar à tona com a sunga cheia de areia? Onde estava o cenoura e bronze de dia e a calamina a noite para contar a história do encontro com o sol? Cadê os trajes de banho comprados em lojas de departamentos com o elástico meio frouxo? E a companheira cerveja que nos acalentou por esses anos todos indignada ao ser trocada por uma bebida insonsa? Que mal há em uma barriguinha constituída de chopp a se bronzear sobre canga com estampas diversas adquirida ali mesmo na praia? Por que não comprar um par de óculos escuros Ray Ban do ambulante para ajudar na economia local? E o queijo coalho, água de coco e milho cozido? Por onde andarão os castelos de areia, piscinas escavadas na praia, enterrados vivos com a cabeça de fora, estrelinhas na margem d´água, simples caminhas à catar conchas? E as conversas ao vivo? Onde estão? Onde estão os risos de quem guardou dinheiro o ano todo para estar ali naquele momento rindo do pileque do amigo? Estar ali na Bahia e não fingindo estar em Ibiza. Ao final cheguei à conclusão simples de que o sistema de pasteurização pode até ser bom para o leite, mas para a juventude tenho minhas sinceras dúvidas. Se bem que leite não dá barriga né?

 

Guilherme A. Santana

17/10/2021

santanagui@hotmail.com      

sexta-feira, 14 de maio de 2021

 

Memória seletiva

 

Estava eu levando quatro adolescentes à escola, dois deles inclusive com idade para votar nas próximas eleições, quando a galera destampou no assunto preferido do momento. Falar mal do Presidente Bolsonaro. Encheram a boca para falar dos episódios dantescos do nosso atual mandatário. Foi quando um deles citou a última pesquisa eleitoral divulgada que dava uma considerável vantagem ao ex-Presidente Lula num futuro embate presidencial. Nesse momento passei à reflexão de alguns fatos que me intrigaram momentaneamente e me inquietam ao longo dos tempos. O que leva o brasileiro à possibilidade plausível de reconduzir ao poder um partido político, inclusive por seu líder maior, que recentemente esteve envolvido num dos maiores esquemas de corrupção já vistos na história? Seria a memória curta, tão clamada em verso e prosa do nosso cidadão? O que leva uma juventude, tão recheada de informações, a embarcar nessa dita ideia vermelha? Foi aí, quando a discussão dentro do carro estava em uníssono, que me lembrei da última eleição. E voltei ainda nas anteriores, quando o Partido dos Trabalhadores assumiu o poder. Naquela época tinha-se a ideia de que havia necessidade de romper um ciclo de “social democracia” e experimentar um governo mais à esquerda. Mesmo que fosse apoiado pela clássica classe industrial e pelo sistema de bancos. Assim se fez e Lula conseguiu sentar na cadeira de Presidente. Após esse período, já na última eleição, a maré virou e novamente o clamor por uma virada mais a direita se fez sentir no cidadão brasileiro. Inclusive esse que vos escreve foi um que levantou, no segundo turno para não sentir tanta culpa, que precisávamos de um rompimento com o status quo do PT. Aí vocês podem me perguntar: Mas você não sabia quem era o Bolsonaro? Aí eu respondo de bate pronto: sim, sabia. Nos meus vários anos de militância em Brasília tinha a visibilidade da carreira do político. Sabia de suas ideias. Do seu conceito conservador. Mas naquele momento de decisão do segundo turno, achei que a quebra do ciclo seria mais benéfica ao país do que os princípios conservadores seriam maléficos. Embarquei na canoa. Hoje, com os acontecimentos desenrolados desde aquela eleição, e diante da ineficiência e ignorância do nosso Presidente (para não dizer coisas piores), penso que talvez a decisão tenha sido equivocada. Aí vem a pergunta cabal: será que a minha memória foi curta ao votar em um político que sabia ser completamente inapto? E eu respondo antes que vocês o façam, que não foi questão de memória curta, mas sim de memória seletiva. Por um pensamento maior, uma vontade de quebra de ciclo, deixei de lado as informações negativas que detinha em minha memória. E muitos eleitores fizeram algo parecido com isso. E penso que o cidadão brasileiro, hoje, está indo pelo mesmo caminho. Se não surgir uma terceira opção viável, coisa que minha experiência de vida grita que não ocorrerá, apesar da minha imensa vontade, correremos pela mesma opção seletiva. Esqueceremos momentaneamente o histórico recente de corrupção encabeçado pelo PT, e para virar o ciclo Bolsonaro, colocaremos Lula de novo na Presidência. Se me perguntarem se isso é certo ou errado, eu respondo que não importa. Não é essa a análise que deve ser feita. Entendo ser o processo de amadurecimento político do brasileiro que está em curso. Isso é que importa e é o que ficará para a posteridade como evolução. Apesar de muitos acharem que só involuímos nas últimas décadas, eu discordo frontalmente. Se isso não fosse verdade, não teríamos quatro adolescentes dentro de um carro, indo para escola, falando sobre política, ao invés de assuntos corriqueiros da juventude. Isso no fundo que alenta meu senso cívico. Aliás só isso alenta.

Guilherme Augusto Santana

14/05/2021

santanagui@hotmail.com             

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

a ida do boêmio

 

A ida do boêmio

 

Precisei abrir uma cerveja gelada e colocar uma música na playlist para conseguir escrever esse obituário em forma de crônica. Não uma cerveja qualquer, mas uma Antárctica, como nos velhos tempos. E muito menos uma música qualquer, senão Nelson Gonçalves. Uma homenagem. Já peço desculpas por escrever de forma tão pessoal e introspectiva, mas é que o coração necessita.

Boemia, aqui me tens de regresso

E suplicante lhe peço a minha nova inscrição

Voltei, pra rever os amigos que um dia

Eu deixei a chorar de alegria

Me acompanha o meu violão”

              Foi assim a minha primeira impressão do Ferola. Melhor. Do Tio Ferola. Aquele boêmio que chegava nas festas a entoar as músicas de seresta com sua voz grave e seu tom embriagado. Cena de assustar as crianças e corar as carolas. Profano como a terça de carnaval. Santo como o canto do barítono. Porém nunca ignorado. Presente como a chaga mais dolorosa ou o sorriso mais caloroso. Sempre esperei sua entrada triunfal como se chegasse de uma cena de Jorge Amado a encher o ambiente de música e alegria. E foi assim que ele foi entrando em minha vida. Com uma alegria que me fazia alegre.

              A segunda impressão foi quando, por ocasiões de férias escolares antecipadas, fui “trabalhar” na Caneta Dourada. Patrimônio e tradição familiar e goianiense. Ali na rua do lazer encrustada entre a 3 e a Anhanguera. Perto do caldo de cana com pastel que desfrutava com os trocados que ele me dava nos intervalos da lida. O Tio Ferola comerciante. Vendedor. De canetas e almas. A ensinar um pequeno garoto burguês o barulho da máquina registradora e o cheiro das notas recém impressas. Inúmeras vezes vi os amigos chegarem à loja e chamarem Ferola ao escritório. Um sem par de vezes. Quando questionei onde ficava o raio do escritório, descobri que se tratava do Café Central. Escritório de interlocutórios fraternais. Quantos amigos presenciei solicitando por esse café, e ele com paciência, mandando cuidar da lojinha enquanto ia ao escritório. Jason, Orlando, Antônio, João, José, Aristides, Muitos. Todos tios. Sempre esperei a chegada deles como uma cena de cinema em preto e branco a encher o ambiente de amizade e cumplicidade. E assim ele foi entrando na minha vida. Com uma amizade que me fazia amigo.

              Não tardou estarmos mais juntos. Na terceira impressão. Elogiava minhas “petições” falando que muito advogado não escrevia com tal clareza. Ainda mais para um engenheiro de formação. Eu acreditava. Sabia que no fundo o afeto falava mais alto. Esse afeto que ele tinha de graça. Uma capacidade de elogiar as qualidades e relevar as deficiências que ainda não havia encontrado em ser algum. Sentia-me especial perto dele. Quantas vezes, em começo de conversa com um estranho, não citei seu nome para me dar a conhecer. Sou sobrinho do Ferola! Ah o Ferola! Conheço demais. Quem não conhecia? Até meu filho mais novo que o chamava de vovó Ratatouille, a vibrar pelas moedas que ele tirava do bolso, ofertando a criança como um tesouro. Como não conhecer? Quando minha filha mais velha encasquetou com uma máquina de escrever, entrei na sala do Tio
Ferola e perguntei se não sabia de alguma peça para satisfazer a pequena milênio. Ele mais que depressa levantou-se e abriu um de seus velhos armários e lá de dentro tirou uma velha máquina de escrever. “Com essa eu ganhei a minha vida. Leve e entregue a Helena”. Sempre esperei dele esses atos de afeto como nas músicas de Pixinguinha. E assim ele foi entrando na minha vida. Com um afeto que me fazia afetuoso.

              Nos últimos tempos travamos uma convivência pacienciosa. A quarta e última impressão. Ia quase todas as semanas vê-lo na empresa para somente conversar. Escutar suas reminiscências e acenar com a cabeça concordando. Que mais eu podia fazer? Restava-me a resignação de ver um gigante no caminho do adormecimento. E nessa última impressão vi resplandecer a paciência. Horas e horas a conversar e administrar uma tragédia anunciada. O sonho de uma vida inteira que ruía perante seus olhos. Mesmo assim eu aguardava nossas conversas semanais. Essa semana eu ainda não o havia encontrado, e não sei o porquê o coração doía. Pensei várias vezes em propor-lhe ditar um livro de histórias de vida. Eu me disporia a escrevê-lo. Repleto de paciência como tinha aprendido com ele. Outras vezes ficava somente a observar seus atos de encerramento. Em algumas vezes tive a impressão que se julgava imortal, mas em outras, via que apenas esperava o inevitável chegar. Com uma paciência impassível. E chegou. Como uma cena de Ariano Suassuna: “Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre.”. E assim ele entrou de vez na minha vida. Com tamanha paciência de vida que me fazia paciencioso.

              Ao final de tudo, volto a pedir as mesmas desculpas que fiz no começo, se essa crônica pareceu tão pessoal e intransferível. É porque o coração pediu. Já o disse. O coração suplicou por esse desfecho. Aquele que faltou quando não estive com ele nessa semana. Uma despedida que se fez aos poucos. A cada encontro. A cada reminiscência. A cada conversa. A cada café na cozinha regada a história. Assim se fez a última impressão. Cheia de alegria, amizade, afeto e paciência. Agora, com certeza, ele irá tomar café em outro escritório junto com Seu Agenor, Dona Natália, Pedro, Sinhana e tantos outros que foram antes para arrumar a mesa do baralho. Aqui ficamos com a saudade eterna do Tio Ferola.

 

* em memória de Ferola Torquato da Silva

 

Guilherme Augusto Santana

14/02/2021